O trauma primário que diz respeito às marcas que a experiência de certos acontecimentos suscita de forma direta, em indivíduos autónomos ou em grupos. Pode resultar de um acontecimento único ou de um processo contínuo que afeta o próprio indivíduo ou grupo de indivíduos (Erikson, 1995), acontecendo-lhes de forma direta. Mas também pode afetar quem está próximo em termos espaciais e afetivos (Clements, et.al., 2018), podendo conduzir, posteriormente, ao desenvolvimento, nestes últimos, de um trauma secundário.
Já o trauma secundário e o vicariante (vicarious trauma), que segundo autores como Williamson et al., (2020) se mantêm como um dos elefantes brancos da pesquisa académica, podem ser definidos como o “impacto da exposição indireta a experiências traumáticas, produzindo efeitos que podem ser ‘perturbadores e dolorosos’ e que ‘podem persistir por meses ou por anos” (Williamson et al., 2020, p. 55). Não afetam somente grupos que exercem a prática clínica, ou do cuidado continuado, como os enfermeiros, mas igualmente outros grupos que trabalham com sobreviventes de trauma (Fernandes e Maia, 2008), tais como antropólogos que desenvolvem trabalho de pendor etnográfico em contextos de violência ou de pós-conflito (Wies e Haldane, 2011, p.10).
O trauma secundário, no caso do stress traumático secundário “resulta da exposição do indivíduo a experiências traumáticas dos outros” (Oliveira, 2008, p. 40) com enfoque geral para quem lida com sobreviventes de guerra, estando de forma recorrente relacionado com sentimentos de empatia e ligações de parentesco com os lesados (Oliveira, 2008).
Já o trauma vicariante resulta da “exposição e do desenvolvimento empático dos terapeutas com histórias traumáticas de seus clientes, refletindo-se em mudanças cognitivas, afetivas, relacionais”
(2008, p.39), tratando-se portanto do trauma dos cuidadores de saúde que estão sujeitos de forma continua ao trauma dos seus utentes (p.39).
Em suma, e para uma melhor perceção do leitor, sublinha-se que o trauma vicariante e o stress traumático secundário são ambos traumas secundários, pois não ocorrem de forma direta com o indivíduo. Porém, funcionam a partir de dimensões sociais e psíquicas diferentes (2008)10, embora na prática sejam bastante similares daí que seja difícil alcançar uma clara distinção entre ambos.
Ou seja, por exemplo, se um dado psicólogo tivesse como utente um familiar (algo que por vezes ocorre, embora não seja de todo convencional os profissionais atenderem familiares nas consultas de psicologia devido ao conflito emocional), e este último fosse ex-combatente da guerra colonial, este psicólogo
poderia apresentar sintomas destes dois subtipos de trauma secundário.
Poderia, por um lado desenvolver um trauma proveniente do facto de ser familiar do lesado de guerra (stress traumático secundário). Por outro lado, poderia também ficar traumatizado pela narração do trauma por parte de um utente seu, um trauma que iria adquirir em segunda mão durante o ato da consulta de psicologia (trauma vicariante). Este profissional de saúde mental, poderia, portanto, apresentar os dois tipos de trauma secundário aqui referidos.
Assim sendo, e tendo em conta que até mesmo na literatura muitas vezes são classificados como sinónimos (Oliveira, 2008), não havendo ainda um consenso, neste atigo procurei tratá-los de igual forma.
Durante as entrevistas com os interlocutores observei que eles próprios não faziam distinção entre stress traumático secundário e vicariante, nem mesmo no âmbito de programas oficias de apoio ao trauma secundário levados a cabo nas instituições de saúde onde estão filiados, ocorrendo uma sobreposição destes conceitos no seu discurso.
Sendo, ainda, que nestes relatos que recolhi um dado indivíduo torna-se vítima do trauma secundário, ou segundo as suas palavras torna-se uma “segunda vítima”, não apenas pelo facto de ouvir e “sentir” a história traumática contada pelos utentes – como é frequentemente referido na literatura –, mas, por exemplo, com a pressão de ter de enfrentar a família dos lesados, com o stress de ter de lidar com mortes de forma constante (ou seja um processo de empatia derivado da “ferida do corpo do outro”) ou com o contacto muito próximo e empático com pessoas em situação de convalescença.
Partindo do pensamento de Freud (1937-1939) percebemos, também, o que é o trauma secundário, uma vez que é uma ferida que não ocorre no nosso corpo, mas sim no corpo de outrem, porém, pode também ser classificado como primário uma vez que pode ser testemunhado de forma direta (como é observável nos discursos dos interlocutores desta investigação). Contudo trata-se de algo que acontece a essa outra pessoa e não a nós, mas que por meio da empatia (Oliveira, 2008), sentimos quase como se estivesse a ser vivido em primeira mão, e podendo motivar o surgimento de uma ferida na nossa própria mente (Freud,1937, 1939; Caruth, 1995, 1996; Erikson 1995).
Assim sendo, por vezes, o trauma acaba por ser uma mistura das manifestações primária e secundária, ocorrendo, aquilo que aqui denomino convergência de trauma primário e secundário.
Em minha defesa não induzirei o leitor a erro de definição destes dois tipos de trauma (primário e secundário) e destes dois subtipos (stress traumático secundário e trauma vicariante), pois estes últimos refletem ambos uma noção mais ampla na qual se inserem, ou seja, são ambos traumas secundários, refletem um trauma que provém do outro, mas que nos pode afetar de igual forma. Já os primeiros, sempre que ao longo deste trabalho me referir a um, a outro ou a ambos em conjunto, mencionarei tal facto.
Mais, ainda, o trauma secundário não afeta somente grupos que exercem a prática clínica, mas igualmente os vários grupos que trabalham com sobreviventes de trauma (Fernandes e Maia, 2008), entre os quais também se encontram os antropólogos que desenvolvem trabalho de pendor etnográfico em contextos de violência ou de pós-conflito (Wies e Haldane, 2011, p.10).
Segundo Oliveira (2008), foi a psicóloga Sarah Haley, em 1974, a primeira autora a introduzir na literatura a definição de trauma secundário, a partir do trabalho que desenvolveu com vítimas de trauma primário, e durante o qual entrevistou veteranos de guerra. Também o antropólogo português Luís Quintais desenvolveu investigações em torno do stress póstraumático (2000a e 2000b e 2006) realizando trabalho de campo entre 1995 e 1997 com ex-combatentes da guerra colonial.
Referências Bibliográficas: Excerto retirado da minha tese de Mestrado, que pode ser consultado em bem como todas as referências bibliográficas: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/23148/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20MESTRADO.pdf