A perceção sobre o trauma decorre do reconhecimento de que o mesmo existe, na medida em que “o trauma psíquico envolve intenso sofrimento pessoal, mas também envolve o reconhecimento de realidades que a maioria de nós ainda não começou a enfrentar” (Caruth,1995, p.vii).
Tal significa, por um lado, que ao ignorarmos que algo se passa e que certas marcas decorrentes de uma determinada vivência ou somatório de vivências ficaram inscritas no nosso ser, estas mesmas marcas poderão vir a adensar-se cada vez mais.
Contudo, por outro lado, se buscarmos certas estratégias ou técnicas, de que a narrativa é exemplo, tal permitir-nos-á iniciar um processo de separação entre passado e presente, possibilitando, deste modo, conferir um sentido à experiência (LaCapra, 2016).
A narrativa pode, portanto, constituir uma ferramenta importante no processo de interpretação relativamente ao que aconteceu, bem como na superação20 das marcas que o acontecimento ou o processo geraram. Assim, parece-me pertinente evocar o olhar da Antropologia relativamente à narrativa.
Destaco, a este propósito o argumento de Cheryl Mattingly e Linda Garro (2000) que remete para a ideia da narrativa não apenas como constructo, mas também como construção de significado, já que segundo as autoras: A narrativa é uma forma humana fundamental de conferir significado à experiência. Na narração, como na interpretação de experiências, a narrativa medeia o mundo interior do pensar sentir e o mundo exterior das ações e do estado das coisas observáveis (…). Criar uma narrativa, bem como escutar uma narrativa, é um processo ativo e construtivo (2000, p.1).
Também o antropólogo Jackson (2002) destaca a importância da narrativa, do contar de histórias, como mecanismos de agencialidade em face de circunstâncias inibidoras. Narrar permite, como tal, “reconstruir acontecimentos numa história. Não se trata de viver esses acontecimentos de modo passivo, mas retrabalhá-los em diálogo com outros e a partir da sua própria imaginação” (2002, p.15).
Jackson entende, portanto, a narrativa como uma estratégia de coping na medida em que, por um lado, possibilita uma representação da vida através do uso da palavra e, por outro lado, consiste num mecanismo que transforma o modo como experienciamos a vida e restruturamos os acontecimentos vividos no passado.
Tal remete-nos, portanto, para a ideia de que a partilha de experiências traumáticas por meio da narrativa, pode suscitar um processo de cura de feridas interiores. Esta qualidade terapêutica e catártica da narrativa, do contar da história e do seu entendimento a partir desse mesmo ato de narrar, foi referida por vários dos interlocutores durante as entrevistas, a título de exemplo:
Tiago
Sim, a narrativa é o processo principal de coping, é a pessoa descrever a situação (…) e só o facto de descrever o que aconteceu já ajuda muito. (…) A narrativa é a principal ferramenta de coping para situações traumáticas.
Magda
Tudo tem de ser falado, acho que os problemas podem diminuir quando são falados.
Francisca
Sim, eu acho que uma das questões importantes que nos ajuda a ultrapassar é conseguir falar. Cada vez que falo sobre um tema ocorre mais uma estratégia. O verbalizar estas coisas é importantíssimo para ajudar a racionalizá-las. Ou seja, eu consigo racionaliza-las melhor falando sobre isto. Mas não sei se é uma cura ou não para o trauma, mas ajuda a “arrumar a casa”.
Maria
Para mim o conversar é algo que me alivia. Há sempre uma palavra amiga, uma ideia para conseguir ultrapassar um bocadinho este mau estar e às vezes o conversar é que faz com que a vida seja um bocadinho menos pesada. Tem sido isso que me tem ajudado essencialmente desde de novembro, me tem aliviado um bocadinho esta dor.
Referências Bibliográficas: Excerto retirado da minha tese de Mestrado, que pode ser consultado em bem como todas as referências bibliográficas: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/23148/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20MESTRADO.pdf